terça-feira, 11 de maio de 2010

Varanda

Os anos passaram por mim como se eu dormisse. As horas já não duram, e por muito que queira o tempo não pára. Sinto-me terminado, encostado, e quase sozinho.


Conto-vos já a controvérsia da minha vida, enquanto enrolo o que me mantém acordado, sem esquecer que me deixa viver o pouco que quero.

Eu fui casado, fui pai, fui amigo. Hoje não. Por mais tórrida que pareça a história, nada tem a ver com a minha família, digo eu, um velho e desprezível homem, que já o foi. Hoje, estou quase sozinho, quase acordado, quase que dormente. Digo quase, porque o que me resta é o que não me larga, e que não largando, não o quero.

Se pensam que a intriga durará com mistérios, acção, ou romance, terminem a vossa viagem, acordem, e procurem um teatro que vos dê satisfação, doravante, eu fico aqui, encostado à parede, fazendo o que me resta fazer todo o dia, olhar. Eu, velho de mim, só me limito a correr enquanto fecho os olhos, e a parar quando os abro, e assim, observo o que mais ninguém observa daqui, da minha varanda.

Enquanto a lua deixa de ser cheia, eu vou deixando a rotina da aldeia entrar aqui, fazendo com que eu tenha tantas rotinas como eu imaginava em novo. Ainda o dia se esconde da noite, e a padaria reluz da pequena janela que encobre o Sr. Viriato. A manhã ainda não começa para muitos, mas Viriato já se ausenta de casa, e lembra o som do pão a estalar, dos dias e anos que ali se prendeu. Viriato ainda tem família, não tão juvenil e descomplexada como a que já tive outrora, mas apática e inconstante, hoje e aqui. Acorda todas as madrugadas e vive no pão as aventuras que tanto deseja. Delas, armazena os trocos no bolso, conta-os durante o dia quando já ninguém o procura, e divide em partes iguais sem deixar uma única parte para ele. À noite, como todas as noites que o observo, deixa cada parte à porta de cada irmão, onde Viriato consola a mágoa da inércia que a aldeia lhe dá aos dias.

Voltando à manhã que ainda se esconde, perto da padaria, não muito longe da praia, a pobreza acorda cedo o Simão. Enquanto sua mãe percorre a Europa na cama, e a doença se desvanece sobre suas palavras, Simão habituado à rotina que a mãe não lhe quis dar, envolve a angústia nas duas rodas da bicicleta, e agita-a para largar ali a de ontem, idêntica à de todos os dias. Simão “passeia” na aldeia antes do sol nascer, e faz chegar o jornal a cada porta (tirando a minha, que faço questão de não ler o que todos acham ser notícia). Pobre Simão, que tudo faz para ignorar os dias escassos da mãe.

Enquanto o sol nasce, o porto deixa entrar os humanos provocados pela fome, ansiados pelo que lhes tomam. Eles, formigas resistentes a todas as barreiras, e sensíveis ao sol, tomam caminhos circulares, complicados, e anormais. Porém, não me parece motivo para me levantar e rumar até eles, nem que fosse para lhes dar um pedaço de pão, e vê-los reduzir a fome.

Já passaram algumas horas e eu mergulho no mar com os olhos, reflicto no céu as histórias da minha aldeia, enquanto busco na terra as palavras.

O dia escolhe outras personagens. A dualidade entre a drogaria e a oficina é tão constante como esta minha estadia na varanda. São duas horas e meia da tarde e Pedro empresta aos carros a sua atenção, enquanto pensa em Inês, a princesa que segura os seus dias, a dedicada esposa que consola as suas ideias na igreja à mesma hora. E é assim, enquanto Pedro esgota energias que não tem na oficina para ver viver o seu reino em tão modesta casa, em tão bela mulher, Inês refugia-se na igreja. Porém, os meus olhos já cansados de lidar com o humilde trabalho de Pedro, viajam até ao outro lado da aldeia. Na drogaria, alcanço Luís, concentrado à porta, como quem espera todos os dias o mesmo. E de facto, espera o que eu observo todos os dias, tal como Pedro pensa observar a pessoa em quem deposita a vida, Inês. A Igreja, onde ela deixa suas ideias e quem sabe não só, reside na drogaria de Luís, o servidor de muitas fiéis mulheres da terra, mulheres que confidenciam em si os problemas mais íntimos que uma pessoa do sexo feminino pode envolver no ventre. Enquanto o prazeroso adultério invade a drogaria, Pedro impede a consciência de estar em harmonia com a verdade. Mas, os meus olhos não.

Há muitas outras história que eu vos poderia contar… o homicídio do Samuel omitido num acidente caseiro, o suicídio da Lúcia que morreu sem querer, ou até o nascimento milagroso de João… mas de que adiantaria? Vocês próprios conhecem histórias iguais! A verdade é que vocês vêm o mesmo que eu, aqui sentado na minha varanda, mas fingem que não é nada convosco. Não se levantam para ajudar… a fome, o adultério, a doença ou a pobreza, tal como eu não me levantei para dizer ao Pedro onde é a igreja da Inês, ou para dar um pedaço de pão aos pobres do porto. Mas eu só não me levantei porque estou preso a uma cadeira de rodas, e vocês?



Teresa Rafael