sábado, 20 de março de 2010

   Bom dia.
   Peguei na caixa que me pediste para trazer, mas não me coube no bolso… desculpa. Porém, trouxe palavras do outro dia que saltei ao ignorar Cesário, no verde que ainda permanecia na minha biblioteca. Não foi propositado, mas embora tenha escoltado cada letra, e criado com elas o meu dicionário, empreguei-as na fachada da janela, e fingi que nada daquilo me agradara.
   Por lá, o relógio pestanejava as duas horas frescas.
   Foi então que nessa amarga noite palpitavam-me os olhos, e parei de ignorar as letras. Elas viviam-me e eu vivia-as. Podiam até ser amargas, dependentes da minha caneta, ou então, sujeitas à minha disposição, mas a verdade é que elas viviam, e eu estava logo a seguir.
   Inesperadamente, levantei-me do chão, e corri à varanda. Enchi o cesto que trouxera de letras, sentei-me no perigo da varanda, como se fosse impossível escorregar, e fechei as minhas duas janelas esperando que isto me fizesse sonhar. Mas não. Abri novamente os olhos, e olhando para baixo, constatei que o chão estava de vez menos próximo. Facilmente cheguei à conclusão que não podia deixar esta oportunidade passar, por isso, com o cesto na mão, e as letras envolvidas em cetim, alberguei-as e, passo a passo, fui recolhendo aquilo a que chamam estrelas, e substitui-as pelas letras, esperando assim formar não as palavras que desejava, mas as palavras que pudessem, surgir sem previamente as ter que formar.
   Notei que lá em baixo, perto de casa, ressaltava o alvoroço. Pensei que se olhassem para cima, aquilo eventualmente passasse. Então, levei a mão ao bolso, procurei algo que me socorresse naquele momento, e retirei uma caneta. Pensei em escrever naquele pano negro, mas lembrei-me que não serviria de nada. Nesta situação de inércia, surgiu-me um acto involuntário e imediato, ao que peguei na caneta, com as duas mãos, e bati com toda a força na primeira palavra que se formara, sem ter notado… “sino”. Foi então que se ouviu um som incapaz de ser descrito, e todos olharam, nostálgicos.
   Aproveitei o meu palco, e disse, sem temer quaisquer consequências, o que precisava ser dito. Cesário, que me guiara até então, olhava sem espanto, enviando-me num balão um lápis. Sem esperar, agarrei-o, e pintei-me de Picasso.
   Desta forma aprendi que quanto mais pintava mais me aproximava das nuvens, deixando de alcançar o chão de todos os seus pontos finais.
   No fim, onde nem sequer eu existia, agarrei-me ao cesto, e desci velozmente. Estava tudo normal, principalmente na minha varanda. O relógio… esse parava no sítio onde queria.
   Afinal tudo não passara dum sonho, e tu nem sequer me pediste a caixa, como querias que ela coubesse no meu bolso?
  



 Hoje revirei o quarto por inteiro, e soube-me a canela. Salivei os apóstrofes que não se ouviam, e calquei uma vírgula perdida. Desenhei na parede um som que veio do sótão, sei lá eu porquê, e no minuto seguinte tinha já desaparecido. Bloqueei a janela por conseguinte, e alertei o gato para que não miasse. Apetecia-me uns segundos repletos de solidão e silêncio no chão rico em cera para madeira. Flutuei por entre as paredes do quarto e fechei os olhos para que aqueles segundos me parecessem mais longos e intensos. Desejei tanto que eles permanecessem ali por mais horas, que o relógio parou ali sem ponteiro.

   Com as mãos nos joelhos, inquietei-me e raspei na parede o cabelo. Centrei-me numa única imagem a preto e branco, e tentei torná-la colorida, mas em vão. Queria de qualquer jeito avisar-me de que o tempo terminara, mas eu continuava ali inocente e quieta, feito planta num vaso. Nuns minutos sentia-me lótus, noutros instantes achava-me rosa, com espinhos a oferecer a quem me quisesse tocar. Foi então que devido à variedade de sentimentos que guardava desde o inicio no bolso da blusa, despertei daquela misteriosa clave de sol e duma arte de sonhar.
   Terminou. Abri os olhos e o relógio contava as dezasseis da tarde.